Um jovem empresário divulga vídeo numa mídia social em que, aparentemente embriagado, dirige seu automóvel ostentando um revólver prateado e avisa, assoberbado, a seus inescrutáveis interlocutores que vai dar um tiro; não sabe em quem. E assim o faz, aleatoriamente, em plena via pública, tendo como alvo difuso o que, pelas imagens, supomos ser um pacato bairro residencial. “Papoca, menino!” é seu grito de guerra, embalado por uma onipresente trilha de forró eletrônico – com a “qualidade” poética e humanista de que se sabe.


Na semana passada, acompanhei o noticiário sobre o episódio me perguntando como filósofos como Rousseau ou Norbert Elias – que pensaram sobre o nosso processo civilizador, sobre como o homem tenta sublimar sua dimensão animalesca em promessas de civilidade – analisariam o vídeo. E, possivelmente, na imensa surpresa que teriam ao saber que fatos como esse, que nos remetem às mais remotas barbáries da idade média ou ao pior faroeste do cinema, são reproduzidos despudoradamente na quinta cidade mais populosa de um país como o Brasil, em pleno século XXI.


A violência e a desordem urbana que o poder político de plantão está legando para o futuro da Cidade explicam em parte a permissividade presente no ato do motorista. Mas o gesto tresloucado de atirar em via pública é emblemático, sobretudo, de um modelo de cultura e de (in)civilidade celebrado cotidianamente. Seja, por exemplo, nos programas policiais que fazem da TV um espelho do pior mundo-cão; seja nas letras do chamado forró eletrônico que exalam sexismo e boçalidade.


O “franco-atirador”e seus tiros despropositados parecem personificar, nos termos de Fortaleza, aquilo que Giorgio Agamben chama de “vida nua”. Ou seja, uma vida reduzida a sua dimensão “natural”, não politizada, que se torna mero instrumento de reprodução de determinado poder (político, financeiro ou, no caso, cultural); uma zona oca e indiferente da existência.


O tiro que assombrou a cidade é “apenas” um espasmo de um não-sujeito. É a expressão do desejo de morte de alguém que alienou seu corpo e sua vida. Nosso drama, porém, é que esse tipo de pessoa é um modelo cada vez mais frequente entre nós.


Felipe Araújo é editor-chefe de Cultura e Entretenimento do O POVO (felipearaujo@opovo.com.br)

Artigo publicado no jornal O Povo e reproduzido neste site com autorização do autor

 

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