A concepção da paz no âmbito da normatividade jurídica configura um dos mais notáveis progressos já alcançados pela teoria dos direitos fundamentais. Karel Vasak, o admirável precursor, ao colocá-la no rol dos direitos da fraternidade, a saber, da terceira geração, o fez, contudo, de modo incompleto, teoricamente lacunoso. O abalizado publicista da Unesco assinala
naquele estudo “a emergência da paz como norma jurídica”; enunciado que por si só representava indubitavelmente um largo passo avante. Contudo não foi assim percebido ou conscientizado sequer pelo próprio autor.
O direito à paz é concebido ao pé da letra qual direito imanente à vida, sendo condição indispensável ao progresso de todas as nações, grandes e pequenas, em todas as esferas. É de assinalar na Declaração do Direito dos Povos, o direito à Paz, contido na Resolução 39, da ONU, de 12 de novembro de 1984: “os povos de nosso planeta têm o direito sagrado à paz” e, empregando a mesma linguagem solene, acrescenta que “proteger o direito dos povos à paz e fomentar sua realização é obrigação fundamental de todo Estado.” O novo Estado de Direito das cinco gerações de direitos fundamentais vem coroar, por conseguinte, aquele espírito de humanismo que, no perímetro da juridicidade, habita as regiões sociais e perpassa o Direito em todas as suas dimensões.
A dignidade jurídica da paz deriva do reconhecimento universal que se lhe deve enquanto pressuposto qualitativo da convivência humana, elemento de conservação da espécie, reino de segurança dos direitos.Tal dignidade unicamente se logra, em termos constitucionais, mediante a elevação autônoma e paradigmática da paz a direito da quinta geração. Eis o que intentaremos fazer ao longo das subseqüentes reflexões em busca de uma legitimação teórica imprescindível.
Para tanto, faz-se mister acender luzes, rasgar horizontes, pavimentar caminhos, enfim descerrar o véu que encobre esse direito na doutrina ou o faz ausente dos compêndios, das lições, do magistério de sua normatividade; lacuna, pois, que impende desde logo preencher. Como fazê-lo, porém? Colocando-o nas declarações de direitos, nas cláusulas da Constituição (qual se fez no art.4º, VI da Lei Maior de 1988), na didática constitucional, até torná-lo, sem vacilação,
positivo, e normativo e, uma vez elaborada a consciência de sua imprescindibilidade, estabelecê-lo por norma das normas dentre as que garantem a conservação do gênero humano sobre a face do planeta.
Epicentro, portanto, dos direitos da mais recente dimensão, a paz se levanta desse modo a uma culminância jurídica que a investe no mesmo grau de importância e ascendência que teve e tem o desenvolvimento enquanto direito da terceira geração. Ambos legitimados sobreposse pela força e virtude e nobreza da respectiva titularidade: no desenvolvimento, o povo; na paz, a humanidade. Com esse vasto círculo de abrangência dos direitos fundamentais ainda há espaço para erguer a quinta geração,
que se nos afigura ser aquele onde cabe o direito à paz, objeto dessas reflexões.
O Direito hoje está nas Constituições como ontem esteve nos Códigos. De último, sua legitimidade, após atravessar a crise das
ideologias, assenta sobre princípios. Dantes, a lógica da razão, com a regra, a lei, o código; daqui por diante, o humanismo das idéias, com o valor, o princípio, a Constituição, a justiça. A meu parecer, em termos de legitimidade e democracia, jamais há de prosperar, em países periféricos, Estado de Direito sem Estado social. O direito à paz é o direito natural dos povos. Direito que esteve em estado de natureza no contratualismo social de Rousseau ou que ficou implícito como um dogma na paz perpétua de Kant. A paz é assim obra da divindade, a guerra arte do demônio. Toda democracia, em geral, é paz. Toda ditadura, ao revés, é guerra: aquela guerra civil latente entre opressores e oprimidos.
Artigo orginalmente publicado no Jornal O Povo em
Paulo Bonavides
– Doutor Honoris Causa da Universidade de Lisboa, Professor Emérito da UFC