A Arte de Cuidar é o resgate de uma visão integral de terapia como um suposto cuidar, da antiga tradição dos Terapeutas de Alexandria, atualizada à luz das descobertas científicas contemporâneas. O texto sobre os Terapeutas, de Philon de Alexandria, foi traduzido e interpretado por Jean-Yves Leloup, fornecendo-nos a relíquia de uma referência histórica que contêm as sementes de uma abordagem transdisciplinar holística, uma escola do olhar e da escuta, centrada no Encontro.

Necessitamos superar a polaridade pessoal versus transpessoal. Maslow se referiu a quatro forças em psicologia e terapia: as duas primeiras, que surgiram praticamente ao mesmo tempo, são o behaviorismo, centrado no determinismo reflexológico e a psicanálise, centrada no determinismo psíquico. A terceira força é o movimento humanístico, centrado no potencial humano de saúde, na sua tendência para o desenvolvimento e autoregulação. Para este autor, esta seria uma força de transição para uma quarta força, transumana, centrada no cosmo e nos ampliados estados de consciência: o movimento transpessoal.Compreendo que a quarta força foi um movimento compensatório, de resgate do fator transpessoal, após um século de uma psicologia exclusivamente a serviço do pessoal. Representa, também, uma dinâmica de transição para uma quinta força, centrada na inteireza, que integra a dimensão pessoal à transpessoal, o diabólico ao simbólico, as raízes às asas, a análise à síntese: o movimento transdisciplinar holístico. A abertura para o supra-humano pressupõe um bom enraizamento no infra-humano, no coração do fenômeno humano. Esta ponte que liga a terra ao céu, porta-voz de todos os reinos da Totalidade, o sacerdote cósmico, vislumbrado por Chardin, que facilita que o próprio Universo se mire, se conheça, se integre, se rejubile.O Colégio Internacional dos Terapeutas – CIT, fundado em 1992, por Jean-Yves Leloup, constitui um solo fecundo para o desenvolvimento desta quinta força em terapia, que constela as virtudes conjugadas do rigor e da abertura, aliando o plano pessoal ao transpessoal, a existência com a essência, as raízes com as asas, a profundidade com a altitude. Foi pesquisando a origem da palavra terapeuta, que Leloup deparou-se com uma tradição hebraica, elogiada pelo grande hermeneuta, Philon de Alexandria, denominada de Terapeutas. Há dois milênios, quando da passagem do judaísmo para o cristianismo, é inspirador constatar e resgatar o legado holístico destes sacerdotes do deserto, que exerciam também a função do filósofo, do psicólogo, do médico e do educador, praticando uma protoabordagem transdisciplinar, uma ética de respeito à inteireza do composto humano e uma práxis centrada no cuidar da totalidade do Ser. 

No estilo alexandrino, a tarefa básica do terapeuta é a de cuidar, para que a Grande Vida possa curar. Cuidar, sobretudo, da saúde e da plenitude, já que é a partir do que está bem e fluindo em nós que uma dinâmica curativa e evolutiva é impulsionada, de forma expansiva e integrativa.

 

Para cuidar, precisamos escutar. A escuta é o mais essencial medicamento. É uma grande arte, pois só realmente escuta quem é capaz de silêncio interior. De outra forma, os diálogos internos serão projetados, contaminando e adulterando o que se supõe escutar.  A escuta não projetiva é um bem precioso e raro, dos que cultivam a mente meditativa e contemplativa, nas trilhas do despertar para o Instante, a pátria da Presença.

Escutar é ouvir e, também, interpretar. Aqui nos deparamos com a ciência e arte da hermenêutica, que possibilita o desvelar de um sentido, muito além de meras explicações. O exercício de uma interpretação aberta e vasta ultrapassa o campo analítico, rumo ao universo sintético, dos significados íntimos, das sincronicidades, dos mergulhos nos abismos anímicos e noéticos. Sem negligenciar a sabedoria dos velhos rabinos, afirmando que cada frase bíblica é suscetível de setenta e duas interpretações!

Para cuidar, necessitamos também de uma ética da bênção. Abençoar é bem dizer; expressar uma boa palavra, jamais reduzindo o outro a um rótulo, a um mero objeto de análise. A pessoa não é doente; ela está doente. A doença é um momento de uma passagem, de um processo, de um devir. Ser Terapeuta é restituir o outro na condição de Sujeito da sua existência, de suas dores e louvores.

Abençoar é, também, bem olhar. Olhar para o outro na sua dignidade e integridade essencial, na sua nobreza de filho unigênito da Vida, dotado da originalidade de um semblante. Também o olhar é estruturante, para quem olha e para quem é olhado.  Quando olhamos apenas para o pequeno e o disfuncional no outro, será isto que estaremos estruturando, nele e em nós mesmos. Já que nos tornamos naquilo para o qual olhamos. Enfim, encontramos o que buscamos. O estilo alexandrino, sem deixar de acolher e de cuidar dos sintomas, privilegia e busca no outro o que ele tem de maior: o dom do Ser e a luz interior, muitas vezes esquecida e, mesmo, reprimida. A porta na qual se bate é a que abrirá, no tempo justo…

Roberto Crema
– psicólogo e antropólogo. Terapeuta e coordenador do Colégio Internacional dos Terapeutas e vice-reitor da Unipaz.
robertocrema@terra.com.br

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