Coube ao professor, escritor e crítico literário Braga Montenegro a incumbência de fazer um estudo sobre a edição comemorativa do centenário de Iracema – (Lenda do Ceará) que veio a lume, no ano de 1965, sob os auspícios da Imprensa Universitária do Ceará. No prólogo à primeira edição, escrito no Rio de Janeiro, em maio de 1865, diz Alencar que o livro é cearense. Foi imaginado aí, na limpidez desse céu de cristalino azul, e depois vazado no coração cheio das recordações vivazes de uma imaginação virgem. Escrevi-o para ser lido lá, na varanda da casa rústica ou na fresca sombra do pomar, ao doce embalo da rede, entre os múrmuros do vento que crepita na areia ou farfalha nas palmas dos coqueiros. Para lá, pois, que é o berço seu, o envio” 


 


Na sua apresentação disse com segurança Montenegro: “A crítica dos contemporâneos sobre Iracema não pode  ser dissociada da que foi feita relativamente à pessoa de Alencar, pois de ordinário visava o homem e não a obra. Coincidentemente, porém, Iracema foi de todos os livros de José de Alencar o mais atingido, talvez por isso que constituía, paradoxalmente, uma singularidade literária e, ao mesmo tempo, um repositório de influências ou supostas influências como as que foram assinaladas com proveniência  em Atala, de Chateaubriand.


 


De fato, admitimos os exageros e os ilogismos que tão especificamente definem a atitude romântica, considerada a obra nos limites dos postulados que lhe são inerentes, muito ainda nos resta de apoio, com a perspectiva histórica de que atualmente dispomos, para avaliar a incontestável falsidade psicológica dos indígenas de Chateaubriand, a qual afeta inclusive a veracidade romanesca das personagens de ficção, nisto em que os grandes românticos ingleses foram sempre ciosos no preservar. Alencar neste ponto foi mais comedido e mais realista, a despeito de seu lirismo enfático, do sentimento 


descompassado com que, por vezes, revestia a índole de suas criaturas”.


 


Com o fluir dos anos, após lúcido que lhe dedicou Araripe Júnior, num livro que se tornaria inseparável dos textos alencarinos, e com os artigos e conferências de Afrânio Peixoto, Gustavo Barroso, Augusto de Lima e outros, por ocasião do centenário do romancista, insertos na Revista da Academia Brasileira de Letras n° 89-Ano XX, maio de 1929, o assunto José de Alencar foi aos poucos se esclarecendo. Gradualmente a obra deixou de ser (exceto a preferência popular) simples motivo de ufanismo cultural, desligando-se da vala comum dos compêndios onde figurava para efeitos didáticos, em caráter meramente histórico e passou a constituir objeto de uma completa revisão, sob perspectiva nova, complexa de análise, interpretação e julgamento por padrões e critérios essencialmente estético-literários.  


 


Segmentos da crítica nacional, comentando em torno do selvagem na obra de Alencar e de Chateaubriand, completam o pensamento: “Não é difícil encontrar as fontes principais em que se inspirou Alencar. Temos, pois, o caso de uma composição homóloga, pois apresenta vários pontos em comum: o tema da felicidade primitiva vivida pelos selvagens que começam a se corromper diante da primeira aproximação do civilizado; a ideia do bom selvagem, o amor de uma índia por um estrangeiro, a morte das duas heroínas, enfim, nas duas obras há um conflito fundamental representado pela oposição de índole dos dois mundos: o da velha oposição e o Novo mundo da América. Não se trata, evidentemente, de levar a crítica a ver em Iracema uma obra superior a Atala”.  


 


Neste ano de 2015, em que ocorre o sesquicentenário da obra prima de Alencar, apraz-nos recordar o ensaio – O Romance Cearense, Origem e Evolução, com que fomos contemplados com o Prêmio Osmundo Pontes de Literatura da Academia Cearense de Letras. Trata-se de um trabalho em que comentamos sobre as obras romanceadas dos mais discutidos escritores de nossa terra, entre as quais encontra-se  Iracema. Não cabendo-nos o mérito de opinarmos sobre o que foi dito acima sobre a fulgurante obra, limitamo-nos apenas em dizer: concordando que Iracema marcou originalmente o começo do romance cearense, não podemos afirmar ter sido a primeira obra indianista como querem os críticos. 


 


Quando o romance foi editado em 1ª edição, no Rio de Janeiro, no ano de 1865, três anos antes, Franklin Távora, também cearense, havia lançado em Recife o seu Os Índios do Jaguaribe. Desta forma, coube ao primeiro o privilégio de ter escrito o congênere indianista, como consta do Dicionário Biobibliográfico Cearense do Barão de Studart (Vol. I –  Fortaleza, 1910). Abrimos um parêntesis para dizer da satisfação que teve Franklin Távora de enviar um exemplar da obra a Alencar.


 


Vivendo este na Corte, em pleno fastígio literário, emitiu ao estreante sua opinião sobre o livro com simples palavras cáusticas: “Tais índios precisam ainda de ser descascados”. Enquanto isso, Machado de Assis, que não chegara a ler o livro  de Távora, teceu os melhores elogios  sobre Iracema, através do artigo publicado no Diário do Rio de Janeiro, edição de 23 de janeiro de 1866: “ O livro do Sr. José de Alencar, que é um poema em prosa, não é destinado a cantar lutas heroicas, nem cabos de guerra (…)  Quem o ler uma vez, voltará muitas mais a ele para ouvir em linguagem animada e sentida, a história melancólica da virgem dos lábios de mel…”


 


Como vigoroso crítico literário, jamais o autor de “Dom Casmurro” teria deixado de reconhecer Franklin Távora como autor do primeiro romance indígena brasileiro, 


se tivesse lido Os Índios do Jaguaribe.


 


* Zelito Magalhães, jornalista e escritor

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