A modernidade avança e todo o cenário vai mudando. Não vou aqui julgar se para pior ou melhor, pois tudo na vida tem o lado positivo e o negativo.


Antigamente todos os ônibus tinham cobradores e indo para o colégio todos os dias, na linha Tirol – Ribeira ida e volta do colégio Salesiano São José, terminava conhecendo-os, além dos motoristas e outras personagens que orbitavam no universo dos transportes coletivos. Era o tempo da fraternidade total entre jovens e trabalhadores diversos como garçons, flanelinhas, sorveteiros, pipoqueiros, lanterninhas de cinema, confeiteiros etc.


Hoje fica mais difícil estabelecer um link fraterno com todos eles pelo fato de que alguns sumiram do cenário, substituídos por máquinas ou empresas com logomarcas e funcionários fardados e devidamente enquadrados na CLT.


Lembro de seu Louro, eterno sorveteiro no Instituto Maria Auxiliadora, do pipoqueiro Waldenício na praia dos Artistas e de um confeiteiro sarará muito alegre também no IMA. Nesta olhada retrô sinto brotar novamente em meu coração, todo o carinho que nutria por cada um deles, que tornavam nossas vidas mais felizes e divertidas.


Saindo do plano geral e adentrando numa área mais particularizada, o passado também permitia que vários lares pudessem albergar servidoras domésticas que praticamente faziam parte da família.


Em minha casa residiu durante mais de 50 anos a senhora Maria das Dores Gabriel dos Santos, basicamente conhecida como Dorinha. Esta anja divina e maravilhosa chegou para compor com os Leite Dantas de Rezende com 16 anos e só saiu quase aos 60 já aposentada.


Dorinha praticamente dedicou sua vida a todos nós, cozinhando, coordenando nas tarefas caseiras outras duas fantásticas almas como Tereza e Maria e sempre extrapolando suas funções, pois se metia em nossos namoros, aprovava e desaprovava agregados e tinha autonomia para dar ordens que deviam ser obedecidas quando ainda não tínhamos descoberto a juventude transviada e suas revoluções por minuto.


Apesar de analfabeta, Dorinha sabia de cor e salteado várias rezas do repertório cristão medieval e junto com os raminhos invocava os santos para que os dragões da maldade não pudessem cuspir fogo em nossos destinos. Também acendia velas em profusão, iluminando nossos caminhos e nos prevenia de desvios de conduta que pudessem ter consequências negativas no porvir.


Dora era uma santa sem paramentos e sem nenhum cargo eclesiástico mas, na privacidade de sua existência, acendia um cachimbo noturno em seu espaço arquitetônico e baforava até que goipava um cuspe preto num pinico de alumínio. Em seguida deitava na rede e ia confabular com sua trupe celeste em lindos sonhos reconfortantes.


A cada olhar para trás meu coração fica cheio, repleto, transbordando de amor. Sou grato a um vasto time de seres que ao executar individualmente seus ofícios, formaram a sinfonia que foi compondo minha vida e, nesta partitura amorosa, fui sendo educado numa atmosfera muito agradável e sadia.


Se somos hoje um muito do que já fomos em outras existências e um pouco do que vamos sendo no aqui e agora, posso avalizar como muito positiva a presença de todos os músicos que passam por minha sinfônica, esperando continuar afinado e alinhado com almas boas, para que na última apresentação, possa ser aprovado para esferas superiores.


O mérito, certamente, não será meu. Se somos todos UM, cada um fazendo bem a sua parte, a grande canção final será concluída com mais brevidade.

 

Flávio Rezende é escritor, jornalista e ativista social em Natal/RN (escritorflaviorezende@gmail.com)

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