O Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), reunido no dia 17 de setembro, decidiu punir os deputados federais Luiz Bassuma (BA) e Henrique Afonso (AC). Por unanimidade, ambos tiveram os seus direitos políticos suspensos por 1 ano e 90 dias, respectivamente. Não poderão votar nem ser votados nas instâncias partidárias ou discursar em nome do partido. Impressionante! Será que o PT decidiu enfrentar as consequências do pragmatismo aético que transformou as antigas bandeiras partidárias num trapo rasgado e sujo? Será que as suas lideranças tiveram um choque de nostalgia ética e resolveram tirar os esqueletos do armário e encarar, enfim, a sucessão de escândalos (basta pensar no mensalão) que mancharam importantes lideranças do partido?
A resposta é um redondo não. Os dois deputados não meteram a mão no cofre público. Não mentiram. Não transformaram os seus mandatos em ferramenta de enriquecimento próprio. Não participaram de recorrentes ações de delinquência parlamentar. Não fizeram caixa 2. Seu crime foi defender a vida. Sua ousadia foi questionar a descriminalização do aborto. Os membros do Diretório Nacional decidiram que eles infringiram a ética partidária, pois o PT decidiu em seu terceiro congresso nacional uma posição a favor da descriminalização. A verdade, caro leitor, é uma só: o PT puniu a liberdade das consciências e algemou o direito à liberdade de expressão, valores consagrados na Constituição e pilares dos direitos humanos.
É curiosa a posição de certa “vanguarda”. Como lembra o jornalista Alceu Castilho, editor do site Repórter Social, “temos um samba do crioulo doido”.
“As pessoas de esquerda, acostumadas a pensar na sociedade em função do outro, da coletividade, tomam posição ferrenha “pró-escolha”, pró-indivíduo. E de um jeito que eu não poderia classificar de tolerante – como mostra a suspensão dos deputados petistas”, conclui Castilho.
A defesa da vida não é um assunto religioso. Pode até ter uma dimensão religiosa. Mas não se limita ao espaço da fé. Reduzir o debate sobre o aborto ao universo religioso é uma estratégia para desqualificar os defensores da vida. O problema do direito à vida é antropológico, científico e filosófico. Um embrião e um feto são também uma pessoa, tanto do ponto de vista científico como filosófico. Não ver isso é pôr lacre nos olhos.
É falsa a afirmação de que o feto faz parte do corpo da mãe e a mãe pode abortar por ter direito sobre o seu próprio corpo. Na verdade, a mãe é a hospedeira, protetora e nutriz de um novo ser diferente dela, um outro indivíduo. Biologicamente, o ser que está aconchegado dentro do seio da mãe é idêntico ao que estará sentado no seu colo com três meses ou à mesa com ela quando tiver 15, 20 ou 50 anos de idade. O embrião é distinto de qualquer célula do pai ou da mãe; em sua estrutura genética, é “humano”, não um simples amontoado de células caóticas; e é um organismo completo, ainda que imaturo; e – se for protegido maternalmente de doenças e violência – vai-se desenvolver até o estágio maduro de um ser humano.
Aprovar a autorização legal para abortar – como bem comentam os filósofos Robert P. George e Christopher Tollefsen, em seu livro Embryo: A Defense of Human Life (Doubleday, 2008) – é dar licença para matar uma certa classe de seres humanos como meio de beneficiar outros. Defender os direitos de um feto é a mesma coisa que defender uma pessoa contra uma injusta discriminação, a discriminação dos que pensam que existem alguns seres humanos que devem ser sacrificados por um bem maior. Aí está exatamente o cerne da questão, que nada tem que ver com princípios religiosos nem com a eventual crença na existência da alma.
Fala-se, frequentemente, do “consenso por interesse”. É útil recordar que fruto dele foi a legislação que, durante séculos, definiu que uma raça ou um povo são legalmente infra-humanos e, portanto, podem ser espoliados de direitos e tratados como “coisas”, também para benéficas experiências científicas: é o caso do apartheid dos negros na África do Sul e dos judeus aviltados e trucidados pela soberania “democrática” nazista.
O juridicismo, hoje prevalente, equivale a prescindir de qualquer enfoque filosófico e naufragar nas águas sempre mutáveis do relativismo. Nada tem um valor consistente, tudo depende do “consenso” dos detentores do poder, movidos a pressões de interesses. É óbvio que, por esse caminho, ficam abertas as portas para as maiores aberrações. Que argumento válido se poderá opor, então, a um projeto de lei que aprove a eutanásia compulsória dos anciãos gravosos ao erário, ou a eliminação de doentes incapacitados para o trabalho, na mais alegre imitação da eugenia nazista? Será que o juridicismo tem resposta “válida” para isso?
O brasileiro é contra o aborto. Não se trata apenas de uma opinião, mas de um fato medido em inúmeras pesquisas de opinião. Por isso o PT e o governo precisam ir devagar com o andor. A legalização do aborto seria, hoje e agora, uma ação nitidamente antidemocrática. Ademais, existe a questão dos princípios. A democracia é o regime que mais genuinamente respeita a dignidade da pessoa humana. Qualquer construção democrática, autêntica, e não apenas de fachada, reclama os alicerces dos valores éticos fundamentais.
A honestidade intelectual não foge do debate, não impõe, não assume posições próprias do pior fascismo. Foi o que o PT fez: censurou, ameaçou, impediu o debate, puniu a liberdade de expressão.
Carlos Alberto Di Franco
– Doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra e professor de Ética.
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