Dez de agosto, terça próxima, assinala a passagem dos trinta e seis anos da morte de Frei Tito de Alencar Lima. Esse marco desencadeia em mim aquilo que Nelson Rodrigues chama de processo proustiano, ou seja, todo um movimento regressivo, um fluxo de resgate do passado, pois – mesmo sem ter podido conhecê-lo pessoalmente – tenho alguma memória afetiva com esse preso político, trágico personagem da história do Brasil.


Em julho de 1970, prestes a completar quinze anos, ganhei de presente de aniversário uma viagem no trecho Fortaleza/São Paulo. Por ser ainda menor de idade, tive de viajar sob a responsabilidade de adultos. Fiz então o percurso acompanhando por Nailde e Nildes, irmãs de Frei Tito que iam de ônibus à capital paulista visitá-lo no presídio Tiradentes, em São Paulo.


Quatro anos depois, já com dezenove anos, fui chamado à casa de Nailde, vizinha de meus pais, e recebi a incumbência de traduzir algumas cartas e reportagens escritas em francês. Eram relatos que se referiam ao suicídio de Tito em Lyon, na França, a dez de agosto de 1974, quase um mês antes de completar vinte e nove anos. Frei Tito sofrera torturas em 1969 e 1970. Houvera sido banido do país e suicidara-se atormentado pelas sequelas psicológicas causadas pelo trauma.


Até então eu era um mero representante de uma geração de estudantes que, cerceada pelas instâncias de controle comandadas pelos generais, não dispunha de outros informes sobre a ditadura militar a não ser nas escolas pela preleção dos professores de OSPB e de Moral e Cívica, disciplinas cujo conteúdo induzia a uma análise tendenciosa, comprometida com o ideário dos atos institucionais impostos pelo regime então vigente. Foi a partir daquela tradução improvisada dos textos que aludiam à tragédia do religioso que tomei ciência de que na década de setenta, para além da Copa em Guadalajara, havia um outro aguerrido Brasil que milhões de brasileiros desconheciam.


Treze anos depois desse episódio que muito me revelou sobre a militância da esquerda e que tanto significado exerceu na formação de meu pensamento acerca da realidade, eu me tornei biógrafo de Tito ao escrever em 1987 uma peça sobre o seu martírio, encenada em Brasília e Fortaleza no ano 1992. Para escrevê-la, tive de me reencontrar com algumas figuras que marcaram não apenas a trajetória do padre, mas também a minha própria trajetória enquanto cidadão. Sim, porque como autor teatral, recriei em cena, entre outros fatos, aquela visita que em julho de 1970 Nailde e Nildes fizeram a Frei Tito, no pátio de uma prisão em São Paulo.


À época, Tito integrava o grupo que no convento, por intermédio da ordem dominicana, uma das alas progressistas da Igreja Católica, dava abrigo aos perseguidos pela ditadura, encarnando uma fé subversiva que proclama: bem-aventurados os que têm sede de justiça. A subversão dos dominicanos compreendia que o critério de Deus não se circunscreve ao que é legal ou ilegal, mas sim ao que é justo ou injusto.


Quanto a mim, por ser naquele momento histórico ainda um pré-adolescente emblemático de um período expropriado de informações em função do cerceamento da liberdade de expressão, não vivenciei como militante a efervescência da reação imediata ao Golpe Militar de 1964. Porém, nos chamados Anos de Chumbo do governo Médici, devo à oportunidade de acesso à história de Frei Tito meu engajamento a favor da resistência, tantas vezes vivido nas agitações teatrais contra a censura.


Pela repercussão de sua conturbada experiência de vida em minha tomada de consciência é que hoje experimento a sensação de Proust em busca de um tempo não perdido no qual o Teatro encarou a repressão e viveu a transgressão que desde 1968 estava escrita nos muros de Paris: É Proibido Proibir.


* Artigo publicado em 07.08.2010 no jornal O Povo e reproduzido neste site com autorização do autor.

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