Em 2006, por ocasião do parricídio, Luís Nassif escreveu artigo inspirador sobre Suzane von Richthofen. Desafiava o consenso e esperava que surgisse, depois de sua condenação e do esquecimento do crime pela mídia, algum Truman Capote para lhe desvendar os segredos. (http://bit.ly/13cDLei) Como se sabe, Capote escreveu livro seminal sobre a alma da América profunda a partir do brutal assassinato de uma família americana típica por dois criminosos comuns que foram posteriormente condenados à morte. A Sangue Frio mudou a história do jornalismo e lançou luzes sobre a produção em série de criminosos seriais no contexto específico da sociedade americana. Uma obra de psicologia social como poucas.


Foucault, o intrépido pensador francês, também demonstrou sensibilidade incomum para os criminosos hediondos e suas aparentes imotivações. Seu livro sobre o jovem camponês Pierre Rivière que degolou a mãe e os dois irmãos menores no século XIX é célebre. Antes de suicidar-se na prisão Rivière redigiu um memorial onde tentava explicar seu ato, e isso chamou a atenção do pesquisador de “anormalidades”.


No atual momento de aviltante insegurança pública, índices crescentes de homicídios frios em que os criminosos, flagrados por câmeras, não demonstram compaixão por suas vítimas ou remorso posterior, o mantra se repete: redução de maioridade penal, maior repressão, mais presídios, penas mais severas, e, volta e meia, pena de morte; contrariamente, a insistência sobre a prevenção com as receitas de praxe: educação,combate às drogas, oportunidades de mobilização social, medidas socialmente higienizadoras. Bem menos se fala e põe em curso políticas públicas eficazes de ressocialização. E nada, silêncio absoluto sobre o caráter moral dos criminosos. Para isso a única solução ainda parece ser a velha religião, em suas diversas vertentes. Uma pena.


Com grande atraso histórico os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade instituem clínicas de escuta e testemunho das vítimas da última ditadura civil-militar. O momento já exige mais: clínicas de escuta dos culpados, criminosos políticos e os comuns, de todas as classes sociais. Parodiando os médicos legistas, é vital ouvir o que nos podem dizer os homicidas, dos mais insignificantes aos mais bestiais.


Urge que eles falem sobre si, sobre seus atos, que simbolizem, elaborem na linguagem o fundo de humanidade de que ainda são presumidamente portadores, que nos apontem a nossa própria sordidez e cumplicidade com suas culpas, nos ajudem a deslindar o tecido social putrefato em que nos vemos envolvidos. Castigo, por óbvio, mas também arrependimento, perdão, reconhecimento social e solidariedade moral. A “cura pela palavra e pela boa escuta”. A biomedicina avança a partir da dor de enfermos e moribundos; a vida comum com a dor das vítimas. Mas pode-se mais com a ressignificação da “ausência” de dor por parte dos algozes. É do que nos faz humanos que afinal se trata.
 

* Sandra Helena é p0rofessora de Filosofia e Ética da Universidade de Fortaleza – sandraelena@uol.com.br


Artigo publicado no jornal o Povo e reproduzido neste site com autorização da autora

 

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