O mundo comemora sem fanfarras ou trombetas os 200 anos de nascimento de um dos maiores gênios da humanidade, Louis Braille. A mundanidade não costuma aplaudir com fervor gigantes como Pasteur, Fleming ou Braille cujas inestimáveis contribuições são inteiramente ofuscadas diante do estardalhaço que se faz sobre a morte de criaturas sombrias e de valor duvidoso.
O alfabeto Braille constituído por pontos em alto relevo formando duas colunas e três fileiras de celas cuja associação permite ao indivíduo cego fazer as combinações gramaticais e numéricas necessárias à leitura é a obra prima da cegueira deste imorredouro criador. O menino nascido nos arredores de Paris, cegou aos 5 anos de idade num acidente na oficina de seleiro de seu pai. A família pobre, mas dedicada percebeu juntamente com a comunidade local as incríveis aptidões da criança que foi enviada para uma escola de cegos em Paris. Naquela escola, as crianças cegas desenvolviam sensibilidade tátil dos dedos de pés e mãos tanto para facilitar a locomoção quanto para ler as letras em alto relevo do alfabeto tradicional.
Adler, discípulo de Freud, afirmou que a ferida narcísica provocada por qualquer inferioridade física mobiliza enorme energia mental que seria a base para o desenvolvimento humano, contrariando a tese freudiana da energia sexual como o motor pulsional da vida. Freud, no famoso texto Sobre o Narcisismo respondeu: “Nem todos os pintores são desfavorecidos por uma visão deficiente, e nem todos os oradores foram originariamente gagos”. Como Freud, não quero fazer a apologia romântica que alguns intelectuais fazem da diferença de qualquer natureza mas mostrar como sentimentos e percepções humanos quando estimulados aguçam o poder criador que cada ser humano porta.
O pai de Braille, com a ajuda da família, construiu todo tipo de artefatos para que o filho pudesse substituir a visão perdida, levando-o a buscar outro modo de ver, sentir e andar no mundo. Assim, Argos compensou-o “criando olhos” na ponta dos seus dedos para que pudesse ler com maestria seu extraordinário alfabeto. O deus ferreiro manco do Olimpo, Hefesto, construía maravilhas como Pandora, enquanto o cego mitológico Tirésias tinha a inquietante memória do futuro. Nada disso, entretanto, suplantava a sabedoria e beleza de Apolo que não tinha nenhum defeito físico. Por isso aplaudimos as pessoas com deficiência nos jogos Para-Olímpicos, mas não desejamos que os nossos filhos nasçam deficientes.
Shakespeare mostrou que a grande literatura emerge do entrechoque de sentimentos e paixões humanas, enquanto Braille constrói movido pelo amor seus “pontinhos mágicos” que as regletes dos cegos do mundo hoje reproduzem tornando escrita e leitura possíveis. A língua de sinais é o símile visual do sistema alfabético Braille, no qual os olhos se encontram nas pontas dos dedos. Tais sistemas parecem ser a confirmação da existência de uma gramática universal sócio-histórica que permanece latente no inconsciente coletivo para emergir como linguagem numa determinada cultura. Isso significa que o ser humano nasce com um potencial arquetípico para a comunicação com o outro.
O motor deste processo são os afetos de amor e ódio e o vínculo que originalmente liga o infante humano à mãe. Ao contrário do que diz Wittgenstein penso que “os jogos de linguagem” específicos para diversos ambientes sócio-culturais são possíveis, porque existe um molde já estabelecido no inconsciente grupal. O Ceará se encontra no campo de batalha da língua de sinais tanto quanto do código Braille. A primeira na UFC com programa de educação superior para surdos, com coordenação local da professora Vanda Magalhães Leitão e a segunda no INESP, órgão da Assembléia Legislativa dirigido pelo professor Antonio Nóbrega Filho. A impressora Braille deste órgão está sob a coordenação competente da cega Aurenir Lopes. A realização deste ambicioso programa como de outras iniciativas importantes somente é possível pelo dinamismo do presidente da Assembléia Legislativa Domingos Filho. As pessoas com deficiência assim descobrem por toda parte que seus aliados têm a memória do futuro.
* Artigo publicado, originalmente, no jornal O Povo de 14 de março de 2010 e reproduzido neste site com autorização do autor