Quando eu era pequeno, me deitava ao chão pelas tardes de outono, durante tempos imensuráveis por relógios tradicionais, a olhar as nuvens brancas se movendo lentamente pelo céu azul. Percebia cada alteração de formato daquelas nuvens e soltava a imaginação em busca de definições passageiras sobre aqueles contornos. Dragão, carro, pessoa, coração, peixe, avião, boi bravo, coisa sem forma, enfim, tudo ia se transformando no céu, diante dos meus olhos, cada nuvenzinha ia mudando de forma e minha mente buscando seu novo significado. Na infância, minha imaginação perseguia o vento.

Uma coisa positiva existia no passado: as crianças tinham tempo. Não havia a “cultura do atarefamento”, pela qual pais assoberbados e estressados acreditam que assoberbando e estressando suas crianças estarão garantindo “seu futuro”. Assim, balé, inglês, capoeira, judô, teatro, violão, aula particular, tudo tem hora marcada na vida das crianças urbanas. Elas têm celular e transporte terceirizado. Têm agenda. Até o futebol, o nosso esporte livre, aquele do campinho do terreno baldio, dos timinhos improvisados, que nos fazia sonhar com os gols futuros que faríamos nos estádios lotados… até o futebol foi engaiolado numa “escolinha”, espaço privado e cercado, de grama sintética, com hora determinada e intransponível. Quando chove, não tem aula de futebol! E nós, que nos enlameávamos debaixo de verdadeiros torós, em batalhas homéricas, nas pelejas mais saborosas e inesquecíveis! Como podemos viver num mundo tão estandardizado? Serão as crianças de hoje feitas de açúcar?

Não há tempo para contemplar as nuvens e ouvir o vento. Não há espaço na agenda para a alegria do quintal, para uma música que seja lembrada para sempre, uma música de roda. A vida moderna é estéril em improviso. Papai e Mamãe se desconcertam com o imprevisto, ficam irritados porque isso atrapalha suas metas. Brincar é uma atividade quase proscrita nas cidades grandes. Temos os canais por assinatura e o computador para substituir o pique-esconde, a amarelinha, o garrafão e pular corda. As crianças ficam ali, buscando afeto em um amigo distante, adicionado ao seu Orkut, com que possa desenvolver alguma afinidade ou empatia. Mamãe quer que faça dever de casa, leva para aula de cá, leva para atividade de lá, briga e grita para a criança faça tudo direitinho, preparando para as apresentações do fim do ano! É mamãe leva-e-traz, mamãe motorista: a mãetorista!

E o que dizer do futuro da criatividade? As brincadeiras inventadas? Os contos de princesas imaginários? As lutas contra o mal, vencidas por cavaleiros que empunhavam vassouras como se fossem espadas e usavam baldes na cabeça, como capacetes? Para que criatividade se o meu computador traz jogos tão espetaculares e com definições precisas? Não é necessário esforço nenhum de imaginação para a criança urbana. Tudo vem pronto. A televisão e o computador trazem tudo o que se precisa para que a criança possa se entreter. Criança passiva, alheia à chuva que cai, na longínqua possibilidade de um barquinho de papel.

Ah! …A minha vã imaginação, perseguidora eterna do vento, pode perseguir nuvens sem fim. Na infância rica em quintais, guardaram-se segredos fabulosos de tesouros e comandos de super-heróis. Infância viva e vivida que não me abandona, não me desampara, nunca me deixa só. Para encerrar, apenas me permita uma pergunta, caro leitor: Há um quintal na sua vida

* Artigo publicado no Jornal O Estado em 10/10/2008 e reproduzido neste site com autorização do autor.

Sávio Bittencourt
Promotor de Justiça (RJ). Formado em Direito (Universidade Federal Fluminense – UFF). Mestre em História Social (Universidade Severino Sombra – USS).
savio.estado@terra.com.br

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