Embora seja indiscutível que a melhor posição para ler é a horizontal (talvez por ser a preferida postura para o descanso e o amor), há tempos comecei a experimentar variantes. Graças às obrigações que sufocam o dia-a-dia, passei a ler também em pé, por ocasião de qualquer fila de atendimento, ou sentada & na maior parte das vezes, no assento de motorista de meu carro.


Ler no trânsito pode sugerir algum tipo de infração, mas garanto que essa prática só acontece em paradas de semáforo, nunca em pleno ato de direção & e isso, não por falta de tentativas (tenho de confessar), é que se torna muito difícil equilibrar o livro na página correta e simultaneamente cuidar das marchas e da direção. Mesmo lamentando não ser Shiva para ter outro par de braços, os minutos que consigo nesta leitura dão uma satisfação incomparável. Além do status de “leitora em tempo integral“, único do qual realmente me orgulho, ler no trânsito tem sobre mim o efeito de uma estratégia educativa.


Uma educação para leitor voraz deveria começar assim. Para disciplinar os sôfregos, os inquietos que praticam compulsivamente a leitura dinâmica, e muitas vezes não por pressa, mas por simples ânsia de chegar à página final, surge um método infalível: o trânsito força o leitor a fragmentar o texto em parágrafos. Frases. Palavras. A ruptura do fluxo frenético de uma leitura traz silêncios necessários, pausas meditativas que, de outro modo, não aconteceriam. Obviamente, nem todo texto se adapta ao trânsito. Poemas curtos e contos são os gêneros ideais, que trazem a satisfação de algo concluído ao fim da viagem.


Alguém poderia argumentar que ler na espera de semáforos é ato perigoso para o motorista, que se distrai e não percebe a presença de assaltantes, por exemplo. Pois em meses de prática, nunca tive essa experiência. Ao contrário, sempre fui assaltada quando estava atentíssima & mas impotente para escapar. Acredito mesmo que hoje, se um ladrão se aproximasse de mim, ficaria tão chocado com a absurda cena de uma leitora-motorista que fugiria, de susto ou respeito.


Mas estou brincando: a situação de ler no trânsito não deve ser tão incomum assim, muito menos objeto de estranheza. Hoje em dia as pessoas fazem de tudo dentro do carro: trocam de roupa, acendem cigarros, dirigem bebendo refrigerantes ou retocando a maquiagem. Não se pode recriminar tais costumes, nestas distâncias tão alongadas por congestionamentos. Talvez o único particular da leitura, nesse contexto, seja o bizarro fenômeno de o motorista desejar que o próximo semáforo esteja fechado…


* Artigo publicado em 05.05.2010 no jornal O Povo e reproduzido neste site com autorização da autora.

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