Encontrar um autor de livro que não sabe ler nem escrever é algo bastante incomum. Se levarmos em conta que ele tenha nascido na periferia de uma grande cidade e entrado para o mundo das drogas ainda muito cedo, passamos a acreditar que este personagem seja menos real ainda. Mas não é. Nascido no bairro Lagamar, periferia de Fortaleza, Joel Ventura da Silva, 42 anos, ou melhor, PP Joel (poeta e pintor), como ele próprio gosta de ser chamado, é protagonista de uma história tão verídica quanto surpreendente, e que iria culminar com o lançamento de um livro de sua autoria, contando sua trajetória. 

Ao perder o pai, aos 7 anos, Joel começou a passar dificuldades que o empurraram para o mundo do crime. Depois de várias passagens por delegacias da capital cearense, foi levado aos 18 anos para o presídio Olavo Oliveira, mas, ao sair de lá, continuou sua participação no tráfico de drogas. Ao mesmo tempo, também trabalhava como artista, pintando quadros, e se surpreendia com o fato de não conseguir vendê-los na Avenida Beira-Mar, considerada por ele o centro da boa sociedade, e sim aos outros traficantes, que se mostravam interessados pelas suas obras. 
   
Aos 20 anos, foi vítima de um grave acidente, quando “surfava” um trem cargueiro (levando certa quantia de drogas ao porto do Mucuripe), e esse fato acabou mudando sua vida. Ao receber alta do hospital, ele foi visitado por um missionário que fazia um trabalho de evangelização dentro do Lagamar, e que passou a apoiá-lo, afirmando que a arte poderia ser o instrumento para transformar sua própria realidade.
   
Dessa forma, Joel passou a trabalhar também como decorador de barracas da Praia do Futuro, recortando pneus velhos e desenhando figuras de araras. Pouco a pouco, ele se desligava do mundo das drogas, e logo foi descoberto pela imprensa (não a policial, como esperava): a partir de 1991, os jornais de Fortaleza passaram a publicar matérias sobre seus trabalhos artísticos.
   
Começava a grande transformação. Em pouco tempo, Joel já possuía carteira assinada e trabalhava em um shopping center, mas sempre escondia seu passado de presidiário, para evitar a discriminação. Logo nos primeiros anos do novo emprego já havia constituído família, morava em casa própria, e acreditou haver chegado o momento de mostrar sua história, sem medo.

Como não sabe ler nem escrever (ele sofre de dislexia), passou a contar com a ajuda de sua esposa, Nira Ventura, que ia escrevendo tudo o que lhe era ditado. Dessa forma, começava a surgir um livro que mistura ficção com realidade: “Lagamar, cenário de vidas”, e os manuscritos foram apresentados ao professor Gilmar de Carvalho, cujo comentário a respeito da obra abriu as portas para a publicação do trabalho.

O livro, lançado em 2005 no Centro Cultural Oboé, trata da história do Lagamar, desde os anos 30, época da chegada dos primeiros moradores, até os tempos atuais. Joel se transporta para dentro da história como narrador-personagem, contando toda sua vida e de outros habitantes do Lagamar, enfocando o descaso do poder público para com o bairro, a falta de perspectiva dos jovens e a discriminação que sofrem por viver em um bairro pobre.

Por meio do livro (cuja edição esgotou-se em poucos meses), Joel se considerou, finalmente, reintegrado ao seio da sociedade.
 

Cherlanyo Barros
– escritor
cherlanyobc@yahoo.com.br

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