A arte da narrativa, aplicada à construção de matérias que expressam em imagens empolgantes a realidade, exerce um natural e justo fascínio sobre o leitor. Igualmente, dispara em jovens talentos potenciais um entusiasmo contagiante. É bom que seja assim.


É bom que possamos ler aberturas de textos tão bem resolvidas como esta, de “Vamos Dançar?”, de Ana Tais Martins, produzida para o livro coletivo Econautas: Ecologia e Jornalismo Literário Avançado (São Paulo e Canoas: Fundação Peirópolis e ULBRA, 1996), que tive a oportunidade de coordenar:

Avançando devagar e sempre o senhor que aparenta mais de sessenta anos, mas pode ter menos, afinal, o tempo passa rápido para uns e lento para outros, está quase na esquina com a avenida Consolação, centro de São Paulo. O carrinho pelo senhor puxado já vai abarrotado de jornais velhos, papéis rejeitados não usados e usados e a zoeira da avenida torna inaudível nossa voz para nós mesmos, mas o tal senhor se recusa a dar ouvidos a tamanha afronta auditiva. Equipou o carrinho com um rádio toca-fitas e lá vai ele, sim senhor, com a nona de Beethoven em volume estratosférico. Se “Pour Elise” anuncia a entrega do gás, por que “Ode à Alegria” não anuncia a chegada do papeleiro?


Evoco também a lembrança de  quando garoto, lendo matérias maravilhosas que encantavam, na revista Realidade. Aquilo ecoava em mim, ajudava-me a encontrar uma identidade própria, uma possível vocação. Vibrava por dentro. Pensava comigo mesmo, é isso que quero, ver o mundo com esses olhos, descobrir as vidas das pessoas, explorar territórios deslumbrantes da realidade humana. É isso o que vale a pena fazer, no jornalismo. Colocar tudo no papel com estilo.


Arte. Arte em forma de narrativa do que é real, vivo. Como neste belo trecho de Nasceu!, de Narciso Kalili, matéria publicada na edição de janeiro de 1967 da revista:


    Deixaram a rua de casas de madeira quase todas iguais – cores vivas e muitas flores na frente – descendo para a praça central. Dali entraram para a esquerda, numa rua de terra. Subiram e desceram várias ladeiras e pararam onde a rua não tinha mais saída.

   – É aqui, dona Odila.

    A viagem de automóvel foi curta, mas José Rodrigues dos Santos, o futuro pai, aproveitara para perguntar muito:

   – Ela está sentindo dores. Isso é normal? Ela está fraca, pálida. Será que tudo vai dar certo? Ela precisou fazer tratamento para engravidar. A senhora acha que não tem perigo?

    Dona Odila o tranquilizava, falando pouco e rindo muito:

    – Êta, porca pipa. Tá nervoso, homem? Vai dar tudo certo!


Arte. Arte que ilumina. Como um bom conto, um bom romance, um bom filme. Uma poesia, quase, em forma de prosa, se pudermos brincar um pouco com os conceitos.

    

Mas o tempo passa, a gente amadurece. Depois da fase do primeiro fascínio, uma questão pungente foi rondando minha mente, até explodir clara como a manhã num dia de verão. Em forma de pergunta incômoda:

    Ok, tudo bem. Arte esteticamente atraente. Mas para que?  A serviço de que?


Então meu outro olhar, menos artístico e mais crítico, começou a revirar as entranhas da face estética para tentar encontrar lá dentro, por trás da beleza externa, uma função que move a construção da obra de arte, seja uma pintura, seja o texto jornalístico de qualidade. Essa função que eu procurava foi traduzida pelo psicólogo e educador Dante Moreira Leite, que um dia disse que a arte narrativa pode provocar a elaboração de um pensamento produtivo – aquele que provoca uma catarse mental no leitor, ajudando-o a dar um salto de qualidade na ressignificação da realidade – ou de um pensamento destrutivo – aquele que deixa o leitor no mato sem cachorro, preso numa selva mental de confusões e angústias diante de uma expressão sombria da realidade.


Indo mais adiante, depois, vi o quanto boa parte da comunicação de massa moderna – o cinema, a televisão, o jornalismo – e da arte menos popular da literatura mascaram muitas vezes o desempenho do pensamento destrutivo, emoldurado na embalagem falaciosa de uma fachada  cosmeticamente arranjada, mas que transporta  um  conteúdo interno vazio, oco, depressivo.  O excesso de exposição dos aspectos negativos da sociedade gera uma atitude mental coletiva ruim, camuflada por trás de um texto bem arquitetado tecnicamente – às vezes -, mas de olhar míope, viciosamente focado no ângulo destrutivo da alma coletiva. Um olhar que empobrece a nossa capacidade de enxergar a realidade com outro vigor, além das aparências.


No caso do jornalismo, tristemente há uma acomodação reativa. Isto é, o jornalismo, na maioria dos casos, usa sua tecnologia narrativa – como na televisão, por exemplo – de potencial extraordinário apenas para retratar o real tal como os veículos unilateralmente enxergam. A desculpa-chavão é que o jornalismo mostra em demasia o lado podre da sociedade por que a sociedade está podre. Esta é a condição reativa, de uma postura simplesmente passiva diante dos fatos, vindo a reboque dos acontecimentos.


Ora, avanços extraordinários em ilhas de vanguarda do conhecimento moderno sugerem o quanto a exposição dos indivíduos a um padrão percebido de realidade tende a perpetuar aquele padrão coletivamente. Quanto mais exposição a temas de violência na mídia, mais a mente coletiva da sociedade fica presa a ela. A Teoria dos Campos Morfogenéticos, elaborada por biólogos nos anos 30 do século passado, mais recentemente atualizada por Rupert Sheldrake, está aí para propor uma explicação desse tipo de fenômeno.


Julgo uma grande perda de energia, talento, recurso e tempo, além de ameaça à saúde mental coletiva, a mídia dedicar seu potencial fabuloso de sensibilização a essa tarefa reativa que prende a mente das pessoas num dilema comandado pelo medo. Serve ao propósito de manter a consciência dos indivíduos e da coletividade num baixo patamar de compreensão da realidade.


Por isso advogo para a narrativa jornalística de qualidade uma outra atitude. A postura proativa. O jornalismo aberto a esses novos caminhos em que percebemos a realidade não mais sob uma ótica reduzida, centrada apenas num patamar excludentemente racionalista em excesso. Um jornalismo que não fica à mercê do relato passivo dos acontecimentos mas que percebe o eclodir de tendências e probabilidades, que acompanha a gestação de visões inovadoras, que sai do lugar-comum. Que focaliza uma visão complexa, buscando uma compreensão ampla, ajudando o ser humano a encontrar novos significados, auxiliando-o a ampliar seu grau de consciência de si mesmo, do outro, da existência. Um jornalismo baseado no presente mas voltado ao futuro, também capaz de mergulhar no passado para compreender contextos, processos, dimensões tempo-espaciais reunidas como numa dança quântica de átomos num certo momento iluminado de compreensão. Um insight revelador.


Um jornalismo de vanguarda, sintonizado com avanços na fronteira do conhecimento humano, onde a tendência mais de ponta da epistemologia da ciência – o estudo de como a ciência organiza o seu modo de conhecer a realidade – é a transdisciplinaridade.


Essa plataforma orientadora de como a ciência trabalha advoga o diálogo fecundo e em igualdade de condições entre ela própria, ciência, e as outras grandes modalidades de conhecimento geradas pelo ser humano. A saber, as artes, a filosofia e as tradições, nelas imbuídas tanto o conhecimento de povos nativos quanto as formas de compreensão nascidas nas religiões. Entra em campo, naturalmente, a espiritualidade – não confundida com sectarismo religioso -, assim como a noção de que nós, seres humanos, somos entes multidimensionais. Temos níveis de existências simultâneas, onde interagem nossa materialidade física, nossa inteligência mental, nossas emoções, nossas intuições, nosso mundo psíquico interno e nossa componente espiritual, entendida como o fato de fazermos parte de uma grande teia cósmica de consciência e existência. Nossas pequenas vidas individuais estão ligadas à existência de toda a humanidade, à do planeta, à do cosmos.


O segundo fascínio, enfim. Um jornalismo de transformação. Que trabalha em prol da transformação individual e coletiva.


Busquei sugerir esse caminho a partir do Jornalismo Literário. Senti na tradição dessa escola de narrativa um potencial significativo, agregando à sua tecnologia de expressão do real elementos de novos paradigmas das ciências que estão transformando em profundidade nossa capacidade de compreender o mundo. Contribuições de formulações compreensivas como a Teoria dos Campos Morfogenéticos, já mencionada, a Teoria dos Hemisférios Cerebrais, de campos como a física quântica, toda a linha da psicologia humanista, de Jung a Ken Wilber, de propostas emergentes como a da já mencionada transdisciplinaridade. E propus um caminho, delineando-o de maneira flexível com o nome de Jornalismo Literário Avançado. 


Para quem deseja aprofundar essa abordagem, encontra amplo material na quarta edição do meu livro Páginas Ampliadas: O Livro-Reportagem Como Extensão do Jornalismo e da Literatura, publicado  em São Paulo pela Editora Manole – www.manole.com.br – em 2009.


Essa proposta não resulta de razões puramente movidas pelo diletantismo intelectual. A situação trágica do mundo moderno, cercado de guerras e violência por todos os lados, o esgotamento crescente do modelo civilizatório que temos – excessivamente calcado na questão econômica, pouco atento às questões sociais, quase nada aberto ao genuíno interesse pelo ser humano -, a ignorância escondida por detrás do brilho opaco da inteligência fria sem alma, os enormes ataques da humanidade ao equilíbrio ecológico, tudo isso pede com urgência uma transformação das consciências. Pede coragem de rompimento com os modelos reducionistas de visão de mundo que nos asfixiam. Pede ação transformadora. O jornalismo não pode fugir ao seu compromisso com a vida.


Felizmente têm ocorrido algumas reações positivas no meio jornalístico. Louvo iniciativas de prêmios de reportagem – como a do Instituto Ayrton Senna – que educam o olhar da imprensa não apenas para ver o problema das situações sociais inquietantes, mas para especialmente conquistar boa vontade para com as soluções sendo acionadas, como processos transformadores, nas mais diferentes esferas da sociedade. A nobre iniciativa da Agência da Boa Notícia, em Fortaleza, também está neste quadro promissor de transformações em curso. 


A minha semente de contribuição, nesse contexto, é visualizar que na narrativa de qualidade podemos fazer algo e muito. Podemos trazer o amor – a aceitação das diferenças, a busca da compreensão profunda do outro, a humildade de reconhecer que a existência não só se constitui numa realidade complexa mas contém uma certa porção de mistério que não conseguimos explicar, a capacidade de nutrir uma cultura de paz, a alegria de ver e retratar a vida tão diversificada e paradoxalmente tão unificada nas suas diferentes formas – de volta ao texto jornalístico de profundidade. 


Podemos buscar equilibrar o entendimento racional com o insight intuitivo. Podemos ousar. Devemos tentar o novo. Temos a obrigação de estimular jovens talentos a experimentar caminhos que ainda não foram pavimentados, embora estivessem, talvez, delineados nos passos de gerações anteriores.


Ousemos. Ousemos sonhar novos horizontes. Abramos nossas comportas de percepção. Não tenhamos receio de sermos felizes. Rompamos as barreiras do preconceito ilustrado que esconde sua profunda ignorância por trás do medo. Percamos a vergonha de deixar o coração pulsar junto com as nossas mentes.


Permitam-me terminar este texto como termino o primeiro volume do meu livro Ayrton Senna: Herói de um Novo Tempo, publicado pelo sistema editorial Clube de Autores – www.clubedeautores.com.br – em 2009:

A consciência divina que habitou entre nós com o nome de Ayrton Senna da Silva está fluindo em algum lugar da existência, nos oceanos do grande mistério do Criador. Deixe-a em paz. Guarde apenas a memória carinhosa do refrão inesquecível. O nosso grito amoroso de guerra. “Olê, olê, olê, olá, Senná, Senná”.  Uma lembrança para cima, alto astral no seu coração.


Somos todos divinos. Só que estamos ainda descobrindo isso. Portanto, podemos saber que quem esteve entre nós, enroupado de corredor de Fórmula 1, foi uma luz muito, muito especial. Que nos deu o recado que pôde e se foi, muito rápido.


Continuamos aqui. Por enquanto. Um tempo. Esperemos que seja longo, produtivo. Que tenhamos a coragem de cocriar a realidade saudável que podemos. Aqui, já, agora. Brasil, Gaia, mundo. Você, eu, todos nós. Como seres humanos. Como cidadãos e cidadãs. E como crianças em evolução do Universo.


Edvaldo Pereira Lima, jornalista, escritor, é professor (aposentado) da Universidade de São Paulo, cofundador e docente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário – www.abjl.org.br-, Doutor em Ciências da Comunicação pela USP, com pós-doutorado em Educação pela Universidade de Toronto. Professor-visitante das universidades de Londres e Florença em 2005, professor-visitante da Universidade EAN (Bogotá) para o período 2012-2014. Contato: ed.pl@terra.com.br

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