Quando os heróis não se impõem por si mesmo precisam ser criados. Em algumas nações há uma profusão deles, criados ou não. A jovem república brasileira também precisava dos seus. Pelo menos de um. Bem que os militares que proclamaram a república gostariam de escolhê-los na Guerra do Paraguai, episódio do qual o exército emergiu como uma força política. A encrenca é que todos eram monarquistas, entre eles o Duque de Caxias ou mesmo o marechal Deodoro, o responsável pelo golpe que derrubou o império. Por isso foi preciso voltar ao final do Século 18. De lá foi resgatada a figura do Tiradentes, que era quase um militar, alferes, e servia para o figurino requerido. Décio Villares caprichou no rosto, no olhar, na veste branca e na coragem de enfrentar o carrasco. Daí o quadro foi para os livros didáticos.  Outro pintor, também monarquista, Pedro Américo retratou o herói esquartejado no cadafalso, ao lado de um crucifixo sobrepondo-se a casario. Qualquer semelhança com Cristo não foi mera coincidência, ainda que tenham sido executados de forma diversa. A principal característica de Joaquim José era a coragem.


A mesma inconfidência forneceu a antítese. O traidor. O dedo duro. O impatriota. O vendilhão. O abjeto ou qualquer outro adjetivo possível. Esta repugnância com o suspeito, julgado e condenado pela república, José Silverio dos Reis, ajudou a criar mais uma jabuticaba: ninguém denuncia. O estigma que se criou é que quem aponta um erro ou denuncia uma situação, criminosa ou não, deve ser execrado. Nem mesmo a criação dos disques denúncias, anônimos, animam as pessoas a fazer denúncias cidadãs que possam ajudar a sociedade como um todo. O traidor deve ser aniquilado e por isso as pessoas têm medo de colaborar com as autoridades. Não é problema meu, esquiva-se parte da sociedade. Não vi, não conheço, não estava lá. E por aí vai.


A palavra não vale nada. Os réus podem mentir à vontade. Ninguém é obrigado a gerar provas contra si mesmo, diz a lei. Mentir em julgamento raramente resulta em qualquer pena. Vale para a justiça do trabalho quando se briga por direitos devidos e não. Todos são obrigados constantemente a provar que não estão mentindo. Precisam provar que são eles mesmos, que moram em seus atuais endereços, que possuem o que declaram no imposto de renda, que são idôneos, que têm filhos, que são arrimos de famílias, que são adimplentes, que têm conta bancária, que seus pais são quem diz que são e muito mais. Há até o reconhecimento de firma, com selo e tudo mais.  Então por que arriscar em empenhar sua palavra que um crime foi cometido, que um bandido está escondido em um bairro próximo, que estão devastando uma área de conservação, ou o ônibus atrasou?? Ninguém quer ser confundido com o execrável Silvério dos Reis. É mais cômodo.

* Heródoto Barbeiro – é escritor e jornalista da RecordNews e R7.com – herodoto@r7.com

Artigo publicado no blog do autor (noticias.r7.com/blogs/herodoto-barbeiro) e reproduzido neste site com sua autorização

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here