Viver em família é essencial para que se respeite a dignidade da pessoa humana. Como consequência, qualquer desrespeito a esta convivência é uma grave violação a um direito indisponível e deve ser imediatamente objeto de tutela por parte do Ministério Público e da Magistratura. Para cada criança institucionalizada deveria ser instaurado um inquérito civil, presidido pelo Promotor de Justiça da Infância e Juventude, para investigar as causas de seu abrigamento e as possibilidades de retorno a sua família de origem. Verificada a impossibilidade deste retorno, em tempo curto e previsível, o respeito ao mandamento constitucional obriga aos aplicadores da lei que promovam a destituição do poder familiar e que se encontre uma família adotiva para garantir sua criação com amor.

Este cuidado estatal tem sido negado às crianças abrigadas. É claro que existem Juízes e Promotores de Justiça sensibilizados com a realidade e atuando em suas competências e atribuições com muita dedicação. Contudo, a atuação isolada destes atores sociais não traduz um interesse institucional pela causa das crianças criadas sem família. Os investimentos estruturais na área são tímidos e demonstram que os tribunais preferem criar fóruns regionais e juizados especiais, para tratar, sobretudo, de causas vinculadas às relações de consumo e às varas de família tradicionais. A prioridade constitucional para os direitos da infância, sobretudo para a questão das crianças institucionalizadas, recebe investimentos pífios em termos materiais, embora seja mais importante e urgente que as áreas tradicionalmente contempladas.

A falta de uma legislação que mais claramente aponte para a necessidade de se tratar da criança abrigada para definir sua situação jurídica faz com que o assunto não tenha prioridade para inúmeros juízes e promotores de justiça, geralmente envolvidos com audiências e emergências sociais que batem à sua porta. O Estatuto da Criança e do Adolescente, que significou um importante marco na evolução do Direito ao abandonar a antiga orientação menorista, parece ter sido “canonizado” por alguns intérpretes que se opõe sistematicamente a qualquer tentativa de aperfeiçoamento. De fato o Estatuto é uma norma socialmente muito bem vinda, mas a ausência de obrigatoriedade de tratamento – com prazos para atuação de juízes e promotores – faz com o que a criança abrigada fique, na prática, em último plano.

Pode-se argumentar, no sentido oposto, é que o ECA efetivamente tutela a criança abrigada, quando afirma ser o abrigo uma solução temporária e excepcional. Em nossa opinião esta é, sem dúvida, a interpretação correta e deveria motivar promotores e juízes a comparecerem cotidianamente aos abrigos para tratar da prioridade constitucional, promoverem as reintegrações das crianças a suas famílias e destituírem corajosa e rapidamente o poder familiar dos que não tiverem condições psico-sociais de terem seus filhos em sua companhia.

Contudo, a despeito de ser essa a única interpretação condizente com o texto constitucional, esta atuação está muito aquém do necessário. No mundo real a infância jaz sem família para milhares de crianças, anos e anos em abrigo sem que as instituições tenham sequer tentado mudar sua realidade. Uma norma mais clara apontando para esta emergência teria grande efeito pedagógico para juízes, promotores e, também, para pais biológicos que não têm direito adquirido de abrigar seus filhos, ao contrário do que vem se consagrando ilegalmente na prática.

* Artigo publicado em 12.06.09 no Jornal O Estado e reproduzido neste site com autorização do autor.

 

Sávio Bittencourt
Promotor de Justiça (RJ). Formado em Direito (Universidade Federal Fluminense – UFF). Mestre em História Social (Universidade Severino Sombra – USS).
savio.estado@terra.com.br

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