O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma Lei fundamental Nº 8.069/90, que ao estipular a política de atendimento formou uma rede de proteção à infância e juventude, com a integração do poder público e entidades de atendimento de natureza privada para sustentar a integralidade da defesa dos interesses de infantes e jovens.

Destarte, é correto o entendimento de que a proteção à família, qualquer que seja sua origem ou configuração, é também medida de proteção à criança. Quando se garante a dignidade da entidade familiar, em seus aspetos sociais e econômicos, estar-se-á, em consequência, dando condições para o exercício da paternidade responsável.

Assim, parece ser um consenso absoluto que a proteção da família da criança, tendo o potencial para amá-la e criá-la, é um direito destes adultos que a compõem, como também da criança, já que se projeta como interesse seu. Daí decorre naturalmente, que a família de origem deva ser preservada e apoiada em suas dificuldades para manter em ambiente propício à criação de seus filhos.

É, portanto, compreensível que, havendo a cessação da coabitação da criança com sua família, sejam envidados esforços para que haja a reintegração desta ao seu lar originário. As soluções distintas são, nas palavras da lei, excepcionais.

Mas é preciso registrar que tal assertiva, verdadeira e humanamente defensável, não induz aos absurdos que se cometem na prática, em nome da prevalência da família biológica. Este é ponto nodal da institucionalização indiscriminada de crianças e adolescentes no Brasil. A reintegração é uma decorrência da possibilidade afetiva e emocional de criação da criança por seus genitores. As tentativas de reintegração que expõem as crianças à violência física ou psicológica, ao descaso, à promiscuidade, à infelicidade enfim, são desastres emocionais que destroçam sua autoestima e as colocam em risco a vida e a saúde.

Outro elemento covarde é o tempo que é destinado à eventual recuperação da família de origem. Há uma paciência infinita com a “recuperação” dos adultos, o que prolonga o tempo de institucionalização dos filhos, aumentando seu sofrimento, criando traumas fortíssimos e diminuindo suas chances de adoção. Essa espera longeva é uma prática majoritariamente aceita entre dirigentes de abrigos, conselhos tutelares, equipes técnicas, ministério público e magistratura.

Cabe aqui ressaltar que esta prática vilipendia os interesses da criança e não está autorizada pelo ECA ou pela Constituição. Só por cinismo ou profunda ignorância se poderia buscar nestas normas a sustentação para se deixar uma criança mofar numa instituição por tempo excessivo.

Embora deixar uma criança por meses ou anos a fio num abrigo seja uma obscenidade inconstitucional, abjeta e covarde, é muito raro que uma mãe biológica seja informada ao deixar seu filho em uma instituição que tal ato é algo contrário à lei e que pode ter repercussões em seu poder familiar. A tendência é a condescendência com o adulto em detrimento de interesse da criança. Vivemos sob o império da demagogia, e os aplicadores da lei que não se libertam desta tirana, acabam por se comportar como bonecos de ventríloquos, repetido jargões surrados e vazios para justificar sua inércia.

* Artigo publicado em 17.07.2009 no jornal O Estado e reproduzido neste site com autorização do autor.
 

 

Sávio Bittencourt
Promotor de Justiça (RJ). Formado em Direito (Universidade Federal Fluminense – UFF). Mestre em História Social (Universidade Severino Sombra – USS).
savio.estado@terra.com.br

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