Não há como evitar a incômoda sensação de déjà vu diante da cobertura dos eventos no Rio de Janeiro. As imagens da “espetacular” tomada da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão – o “coração do mal”, nas palavras do secretário Beltrame – pelas “forças do bem”, capitaneada pelo Bope, só não mais soam trágicas pelo que já resvalam de banalidade ordinária e pelo aspecto farsesco.


Custo a crer que qualquer pessoa com um pouco de bom senso, saída da pré-adolescência mental e com acesso livre à Internet acredite em 1/3 do argumento engendrado pela narrativa de imagens sobrepostas às entrevistas editadas no limite do sensacional. Nem o Cel. Nascimento – o mais tolo da tropa – poderia se dar ao luxo de ser tão ingênuo.


Quando vi Tropa de Elite II, em pleno calor do segundo turno da campanha presidencial, saí do cinema estupefata. Pensei: isso é uma tropa de tolos, a começar pelo modelar herói que não enxerga nada do que se passa ao seu redor e ainda se ufana de comandar homens absolutamente íntegros e incorruptíveis, torturadores e assassinos, é verdade, mas tudo em nome do bem contra o mal. Saí achando o filme desonesto e constrangedor ao falar de uma vontade pura de indivíduos isolados contra todo um sistema podre que agora mudava de nome e endereço: dos morros cariocas para a Esplanada dos Ministérios e o Congresso Nacional.


Agora minha visão se desloca sem mudar de campo. É o típico caso de estarmos atrasados em relação à ficção. No Tropa II isso que acabamos de ver já aconteceu faz algum tempo. Ao ver o agora comandante do Bope dando seu ultimato aos traficantes não pude conter o riso.


Explico-me: daqui a algum tempo ele verá que o buraco é mais embaixo. Descobrirá que está agindo como marionete de interesses que nem de longe advinha. Vai barbarizar moradores procurando os bandidos que, pasmem, fugiram supostamente por esgotos construídos pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Piada mais pronta impossível. É polícia com inteligência de ameba e com Forças Armadas a fazer quórum. Difícil fazer coro ao “agora ou nunca”, mesmo com o advento das Unidades de Policiamento Pacificadora (UPPs).


A questão maior é a que o filme mira sem acertar. Se o Congresso é a via de fuga dos bandidos engravatados da nação também é, como os esgotos do Alemão, o escoamento por onde podem sair os restos que obstam a efetivação de uma concepção de segurança nacional cidadã, democrática e sustentada nos Direitos Humanos, da qual o Pronasci ainda forma pálido espectro. Até lá projetos isolados e pontuais serão apenas tampões. A segurança cidadã ainda não tem o status que, por exemplo, a fome galvanizou. Motivo simples: a insegurança pública ainda é lucrativa para setores privados enquanto a fome passou a ser entrave para acumulação de

ganhos de capital.


Chegou-se a falar de terrorismo no início. “Especialistas” logo se apressaram em esclarecer que terroristas têm reivindicações políticas negociáveis enquanto traficantes não. Podem ser executados para investigação posterior, presumo. Para isso existem os “autos de resistência”, restos do período histórico recente que alcunhou nossa presidente eleita de “terrorista”, privada de direitos. Oportunidade rara de inflexão à vista. Ou muitas catarses com pipoca, refri e 3D.


* Artigo publicado em 01.12.2010 no jornal O Povo e reproduzido neste site com autorização da autora.


Sandra Helena de Souza é Professora de Filosofia e Ética da Universidade de Fortaleza – sandraelena@uol.com.br

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