A cada nova crise que atinge a União Europeia-27, a Economia e a política globais ficam se perguntando: pode o PIB da Alemanha seguir sustentando a Grécia? É possível a Portugal existir como projeto autônomo e sustentável? Que Espanha é essa que hoje gera menos empregos que antes da unificação? As questões são muitas, as dúvidas parecem eternas.

Mas uma coisa é certa: o velho mundo, que é primeiro mundo, pensa primeiro na vida como maior valor e na cidadania como maior bem da sociedade.

É neste contexto que se insere a comunicação pública, aquela que os governos oferecem aos governados, a centrada no interesse público, a dialógica e inclusiva. Independentemente da pujança econômica ou da estabilidade política dos estados membros da União Europeia, é lá que se encontram, como em nenhum lugar do mundo, as ferramentas comunicacionais que asseguram à cidadania – e por extensão aos visitantes – o direito de ser informado e de também se expressar quanto aos seus desejos e opiniões.

Chega a ser espantoso, para nós da América Latina que convivemos passivamente com a cidadania muda e, coniventes, legitimamos o Estado solitário. No Brasil, não diferente da Argentina, Chile ou daVenezuela, a comunicação pública ainda é um devir até teorizado em alguns livros, mas pouquíssimo praticado – não obstante as ondas democráticas e o avanço tecnológico que nos chegam quase simultaneamente, em relação à Portugal ou Espanha, a Alemanha, França ou Inglaterra.

Na União Europeia, a relação entre o Estado e o cidadão é um compromisso praticado exaustivamente pelos governos, sejam eles mais democratas ou mais trabalhistas, estejam eles mais à esquerda ou mais à direita do Greenwich político. O melhor exemplo talvez venha da Inglaterra, onde a Monarquia se curva ao Parlamento, pela preservação devalores republicanos, como Estado democrático de direito e dos canais de comunicação que asseguram à cidadania a plena e livre expressão para muito além do simples voto.

Um turista em rápida passagem pelo país vai ver que nos órgãos públicos são garantidas e facilitadas a informação e a comunicação direta, gratuita e no local, com um gerente ou ouvidor, mesmo quando há um atendimento físico de guichê ou balcão – inclusive ao visitante. Nas estações do mais antigo sistema de metrô do mundo, ao lado da bilheteria que arrecada, há uma cabine para prestar contas e esclarecimentos. Na plataforma de embarque, um telefone está disponível para falar com o gerente da estação. Isso é comunicação pública.

Enquanto no Brasil ainda se vê no sistema público de transporte coletivo a advertência “Fale com o motorista somente o indispensável”, o ônibus londrino tem dois “andares” de comunicação: um canal de voz com a cabine do condutor e outro com a central do serviço. Nos pontos, as informações sobre linhas e horários estão expostas em braile. Embarcados, cegos e surdos são informados por display eletrônico e canal de voz sobre a sequência de paradas do trajeto. Isso é comunicação pública.

O dia em que um (não) cidadão francês (não) foi suspeito de furtar uma bicicleta

Em Paris, na França, o que é espantosa é a relação de confiança que sustenta o sistema público que estimula a utilização de bicicletas, inclusive entre turistas. O Velib’ (uma referência a vélo libre, bicicleta livre) oferece bikes que podem ser apanhadas, e deixadas, em dezenas de estações espalhadas pela cidade, na conveniência do usuário.  Para trajetos de até meia hora não se paga nada, o que mantém a alta rotatividade no uso. Basta se inscrever, deixar uma caução no cartão de crédito e pedalar. 

O exemplo de sistema público de transporte politicamente correto e ecologicamente seguro é também um modelo de comunicação pública. Além do site de fácil navegação www.velib.paris.fr, que pode ser acessado do telefone, em cada estação há um totem comum terminal de acesso e interatividade com a central, parecido com um caixa eletrônico, mas que é um espetáculo de usabilidade. Achou pouco? Pois em caso de dificuldade, basta acessar um canal de diálogo, e o atendimento é prestado na hora. Isso é comunicação pública.

Eu mesmo precisei do canal. Ao não conseguir desengatar a bicicleta que acabara de pedir ao terminal, o sistema entendeu que eu a estava utilizando, não permitindo uma nova retirada. Irritado por não ter uma bicicleta para mais um passeio, e por estar sob o risco de perder a caução pela não devolução do que não usara, chamei o canal de voz. Falei em péssimo inglês que tinha problemas e, em tom abusado, confesso, exigi que a conversa fosse na língua espanhola. E fui atendido prontamente.  

Comecei dizendo que estava prejudicado por um problema mecânico do sistema, que não aceitaria ser tratado como suspeito de não devolver bicicleta nem admitiria perder o dinheiro da garantia. O senhor tem toda razão, pedimos nossas desculpas, disse uma moça, para meu espanto, em tom cordial e atencioso, como quereria qualquer turista em situação embaraçosa. Dando prova de confiar no que eu relatava, simplificou: basta o senhor dizer o número do posto e o número do engate da bicicleta 613, que o senhor não usou.

Chamei o Velib’ horas depois, passei as informações. Como bom brasileiro, pedi o número do protocolo. Não precisa de protocolo, não há processo aberto, nem pendências, o caso está encerrado. Insisti, pedindo que me enviassem um comprovante de que não devia nada, de que nada me seria cobrado. Não precisa informar o que o senhor está me afirmando; não sendo necessária a devolução nada lhe será cobrado, disse. E muito obrigado pela informação, o engate já está sendo consertado, finalizou. Isso é comunicação pública. 

Moral da história. Na União Europeia, a relação entre o Estado e o cidadão (incluídos os visitantes) é forjada na confiança. A cidadania na União Europeia se fortalece com a na comunicação pública. A abrangência e o rigor com que esta comunicação pública é praticada ainda são um espanto para nós, de países ditos republicanos, ditos democráticos, onde governos e eleitores não se relacionam, não se reconhecem como interlocutores em temas de interesse comum e estão sempre dispostos a assaltar um ao outro.

Alberto Perdigão – jornalista, mestre em Políticas Públicas e Sociedade – aperdigao@terra.com.br

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