Confesso que não me qualifiquei devidamente para usar palavras e expressões “politicamente corretas” em língua portuguesa. Sei que é de boa prática e recomendável evitar-se o emprego de vocábulos caídos em desgraça ou de expressões mal intencionadas.


A expressão correta é “afro-descendentes” quando nos referirmos aos nossos irmãos – como direi, sem incorrer em falta? – de etnia “não-branca”. Lembrei-me que, no Crato, segundo meu avô, as beatas, temendo cair em pecado, não pronunciavam a palavra “facão”. Chamavam-no, benzendo-se para afastar a má figura do Príncipe das trevas, de “fa-bicho-feio”.


Dei-me conta, graças à vigilância patriótica de alguns brasileiros, de que Monteiro Lobato cometeu imprudências de linguagem temerárias e indesculpáveis. Faltas que poderão levá-lo, mais de 60 anos após sua morte, a prestar contas à burocracia governamental a partir de “denúncia” encaminhada ao Conselho Nacional de Educação contra “As caçadas de Pedrinho”, por expressões preconceituosas de prática de racismo “cultural, institucional ou individual”.


Vários trechos foram arrolados como prova do crime, dentre eles os que evidenciaria “estereotipia ao negro e ao universo africano”. A palavra “denúncia” melhor se aplicaria a crimes de prevaricação com bens públicos, tráfico de entorpecentes, etc, julgados com indulgência por aqui. Não que pretenda eu descartar, por negligência ou insensatez, os males que a literatura e as más leituras podem trazer para o convívio e a felicidade das pessoas de bem.


A solução veio em seguida a um parecer, prenhe de eufemismos pedagógicos e burocráticos, aprovado pelo Conselho. Obras inquinadas com esse condenável viés discriminatório deverão ser revistas, preventivamente, a partir de agora, e seu texto suspeito será precedido de “bula” ou “certificado” no qual serão alertados os leitores incautos para os desvios cometidos contra os bons costumes e a promoção racial e feitos os aconselhamentos sobre como ler os textos estigmatizados.


Políticas pró-ativas, afirmativas e de inclusão social começam, com seriedade, mediante programas de educação pública, fundamental e média, universalizada e de boa qualidade, adequada distribuição dos serviços de saúde e da Justiça e redução das disparidades de renda. O resto é conversa fiada.


Se a moda de uso de “bula” de leitura pegar há que se pensar em produzi-las aos milhares, a começar por infundir prudência no ato suspeito da leitura dos textos sagrados, carregados de passagens eróticas e narrativas licenciosas que aos espíritos menos religiosos enchem de espanto e dúvidas.


Outros escritos suspeitos deverão ser confrontados com as instâncias envolvidas com o bem público e a cidadania, tais esses conselhos, secretarias e ouvidorias encarregados, munidos dos seus “jettons”, de zelar pelas políticas de promoção da igualdade racial e pela educação das relações étnico-raciais, sem falar nas diretrizes operacionais e curriculares nacionais para a educação e o ensino de História e Cultura afro-brasileira e africana (ufa!). De forma velada, ainda que não intencional, criamos uma nova categoria ocupacional, a ser regulamentada em breve – a de “certificador” de texto, versão atualizada da censura realizada pelo DIP e o SNI, cujos agentes poderiam ser, agora, convocados à vida ativa para a prestação de bons e relevantes serviços. Patrióticos, até.


* Artigo publicado em  17.11.2010 no jornal O Povo e reproduzido neste site com autorização do autor.

Paulo Elpídio de Menezes Neto é Cientista político e membro da Academia Bras. de Educação – pedmn@globo.com

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