“Na minha loucura, desesperava-me por Deus me ter feito nascer num corpo feminino.” – Cristine de Pisan (1364/1430)
Maria de Araújo, a Beata dos Milagres de Juazeiro, se lhe fosse permitido viver tanto tempo, teria completado 146 anos, em 24 de maio.
Encontra-se no prelo o meu romance A Mulher sem Túmulo, tendo como foco a beata Maria Magdalena do Espirito Santo de Araújo, que sofreu tanto quanto as vitimas da Inquisição, as penas de reclusão, espancamento, calúnia, tendo morte social decretada pela Igreja Católica, a ponto de não ter direito nem mesmo a um túmulo, simplesmente por ser pobre costureira, negra, nordestina e analfabeta.
Foi difícil reconstituir a vida de uma mulher que não tem batistério, não tem certidão de nascimento (na época Juazeiro não tinha cartório), histórico escolar, nem atestado de óbito. Também não tem restos mortais, pois no dia 22 de outubro de 1930 seu túmulo foi aberto clandestinamente por ordem do Bispo do Crato. Seu corpo, mandado sepultar por Padre Cícero em 1914 no interior da Capela do Socorro, tomou um sumiço até hoje ignorado.
As pessoas que se interessam na sua reabilitação têm apenas duas fontes fidedignas: os dois inquéritos, nos quais constam os depoimentos de Maria, padre Cícero, e testemunhas oculares dos fatos miraculosos e algumas poucas cartas em que o padre a menciona.
Dos tantos livros que li sobre a questão religiosa de Juazeiro, poucos são os autores e autoras que se referem à beata com mais humanidade, no sentido de mostrar seu sofrimento e sua dor diante do descrédito da alta cúpula do poder eclesiástico. Falam da questão religiosa de Juazeiro, ocorrida em torno de 1889, sem colocá-la como protagonista dos milagres que mudaram visceralmente a vida do povoado.
Fecho os olhos e viajo no tempo. Na segunda metade do século XIX (1863) nascia Maria de Araújo, época em que os homens ainda detinham todo o poder no planeta: governavam as nações, dominavam o conhecimento, escreviam a história do mundo e determinavam o modo de viver de metade da humanidade – as mulheres. Diante do perfil de Maira de Araújo envolvendo gênero, classe, raça e religiosidade e diante da rigorosa hierarquia clerical masculina da época, convido o leitor e leitora para avaliar junto comigo o estupendo isolamento da sua existência.
Maria de Araújo foi o que fizeram dela. Mandaram que ela praticasse votos de castidade e pobreza. Obedeceu. De pobreza nem precisava, pois nasceu pobre e morreu mais miserável ainda. Nunca fez ouvir sua vontade e sua vocação. Foi vítima do trabalho infantil, da submissão feminina, preconceito racial, descrédito, calúnias, autoritarismo, truculência, proibição de manifestar sua fé, tortura, clausura, banimento social, doença seguida morte precoce e sumiço dos seus restos mortais. Aos 27 anos calaram-lhe a boca e ela foi proibida de falar sobre o que tinha certeza.
“A Mulher sem Túmulo” é um romance que traz como principal missão, subverter e mudar a perspectiva da história oficial sobre a chamada questão religiosa de Juazeiro, introduzindo outros pontos de vista a partir de uma história real. Procurei compor o perfil psicológico de Maria de Araújo com a intenção de reafirmar que a jovem de Juazeiro, responsável pelos milagres da hóstia e tantos outros, não é uma ficção. Existiu como uma mulher do século XIX, teve infância, sofreu com os tabus da primeira menstruação, os desejos impostos pela explosão de hormônios na juventude (que na sua fé seriam as tentações do demônio). Sua única opção de vida foi ter aceitado realizar um casamento divino com Jesus Cristo, acordo feito com o Próprio. E as duas únicas ousadias foram dar comunhão aos padres que a interrogaram no primeiro inquérito, e afrontar os que a fizeram comungar à força, com o fito de desmascará-la. Disse-lhe, por ordem de Deus, que eles não estavam em estado de graça e, portanto, a hóstia não podia sangrar (estes fatos integram os dois inquéritos instaurados pela Igreja Católica, na época).
De resto, só viveu para amar a Deus e a humanidade, ajudar os pobres famintos e flagelados de duas das mais perversas secas do Nordeste, transformando toda a sua vida numa rotina de jejuns, orações, penitências e dedicação aos pobres. Uma vida de martírio. Portanto, segundo os próprios cânones da igreja Católica Apostólica Romana, uma vida de santa.
E por que não operar milagres, se era tão íntima de Jesus? Por que não acreditar nela, nessa grande alma feminina santificada pela fé do povo do Juazeiro?
* Artigo reproduzido neste site com autorização da autora.
Nilze Costa e Silva
é escritora e conselheira do Conselho Cearense dos Direitos da Mulher.
nilzecosta@terra.com.br