Eu aprendi a ler e a escrever com Tia Sinhá e Tia Aparecida. Depois, vieram Tia Fatinha, Tia Elenice, Tia Decy, Tia Dadá… Talvez por ser filho de uma professora percebi logo cedo que ensinar é ofício árduo e merecedor de respeito e admiração inabaláveis. Cresci assim. Até hoje, tenho devoção pelos meus professores. Claro, com o tempo, a gente se identifica com alguns, percebe outros mais vocacionados para o ofício, mas o fato é que lecionar, para mim, é uma atividade quase sagrada.
Sexta última, amanheci muito mal com uma notícia que a TV me trouxe logo cedinho. A professora Jane de Leon Antunes, com os dois braços quebrados e o rosto desfigurado, prestava depoimento numa delegacia em Porto Alegre. Dias antes, ela havia sido brutalmente agredida, no interior de uma escola técnica particular da capital gaúcha, pelo estudante Rafael de Sousa Ferreira, de 23 anos, do curso de auxiliar de Enfermagem. Ele estava indignado por ter tirado uma nota baixa e decidiu se vingar.
A cena, que não foi exibida simplesmente porque não foi filmada por nenhum circuito de vigilância interna, é de uma barbárie sem fim. A educação, ali, denunciava toda sua falência. De nada adiantou esse rapaz passar por toda uma pré-escola, uma formação básica e secundária até chegar ao ensino profissionalizante. A escola não foi capaz de ensinar a Rafael a conviver e a aceitar que a reprovação e a derrota são tão naturais quanto a aceitação e a conquista. Esse rapaz é um analfabeto social.
Mais que ensinar a ler, a escrever, a contar e tudo mais, a escola tem que ser capaz de ensinar a viver. E ninguém vive sozinho. A escola, longe de ser um aparelho repressor, tem que fazer dos limites da vida comum um chamariz da liberdade. O indivíduo só é livre e pleno na medida em que não cerceia nem impede a liberdade do outro. Educar é, sobretudo, capacitar a conviver. “O limite de um acaba exatamente onde começa o limite do outro”, ouvi isso sistematicamente a minha infância inteira. Infelizmente, Rafael e eu não passamos pela mesma escola.
* Artigo postado em 15.11.2010 no jornal O Povo e reproduzido neste site com autorização do autor.