Saber viver / Cláudio Azevedo
Parece que há bastante tempo estamos passeando em corpo físico, esquecidos de quem somos na verdade. Esse sentimento de saudade é conhecido pelo hindu como Bhakti, uma melancolia a corroer nossos corações, sem saber onde fica nossa casa, nosso lar original, sem conseguir nos adaptar à forma como este mundo se organiza. Nos sentindo estrangeiros, falando outra língua, tendo outros costumes. Estamos isolados…
Aos poucos lembramos quem somos e descobrimos estar exilados. Mas para nossa maior libertação precisamos enfrentar nosso maior desafio: conhecer e integrar o esquecido e exilado em nosso próprio ser… no nosso quarto escuro. Nos assustam as dores, nos assustam temores, culpas, auto-condenações, hábitos esquecidos, condicionamentos não controlados, fugas infantis…
Esquecemos de vigiar a nossa própria vigilância e nos pegamos, surpresos, em nossas próprias distrações, sem saber onde estamos e como começamos a cochilar… É nossa sombra quem nos comanda, e só conhecemos a ponta do iceberg de nossa consciência. Temos medo do que somos capazes, pois somos capazes de tudo (e mais um pouquinho)…
Existe um jogo indiano chamado maha-lila que representa fielmente esse grande jogo cósmico no qual estamos metidos, confinados pela nossa Mãe Divina, ‘condenados’ ao exílio da nossa própria Presença até que a percebamos, sem pensamentos, sem desejos, sem nada, em nosso vazio. Temos muito medo do vazio.
Mas é justamente esse jogo que, realmente, coloca as coisas certas nos lugares certos, para que despertemos e olhemos para coisas já esquecidas em nosso quarto escuro… Para que olhemos e constatemos nossas contradições, entre aquilo que fazemos e aquilo que realmente queremos (autenticidade), para que olhemos e constatemos o quanto já crescemos e o quanto ainda temos que crescer (amadurecimento), para que olhemos e reconheçamos o quanto temos que invadido e sugado as pessoas que mais amamos e consideramos, e busquemos o pólo oposto (respeito), para que consideramos o que temos feito em nossas próprias vidas e busquemos mudá-la (amor próprio), para que percebamos como a temos enchido com supérfluos e descartáveis, querendo abraçar o próprio universo com os braços do ego e esquecendo que ela é muito simples (simplicidade), fugindo arrogantemente das verdades em vez de encarar o fato de que não somos a Verdade no mundo (humildade), querendo controlar o que vai acontecer daqui a alguns minutos e esquecendo o que realmente é necessário ser feito no próximo quantum de tempo (plenitude), seguindo os caminhos tortuosos, fugidios e ilusórios de nossa própria mente.
Saber viver é acolher quem já somos, sem perder de vista o que podemos ser… Saber viver é reconhecer os próprios erros, sem perder de vista o querer acertar…
Saber viver é acolher nossos apegos e desejos, sem perder de vista a Realidade… Saber viver é olhar ternamente para nossas fragilidades, sem perder de vista o inflexível caminho que leva à perfeição…
Nesse trilhar, sempre existirão os furacões que, vez por outra, nos recolocam no prumo. Sempre existirão os momentos de desalento que nos farão viver nossas noites escuras da alma…
Nesse trilhar, sempre existirão os momentos de ampliação, em que, percebendo nossos atos e omissões, aumentamos o alcance de nossa consciência a níveis mais elevados de compreensão do que é a vida e do que estamos fazendo com a nossa…
Nesse trilhar, ora perceberemos que já estamos no paraíso (nunca saímos dele), ora perceberemos que estamos no inferno (construído, inconscientemente ou não, por nós mesmos)…
Nesse trilhar, ora subimos, ora descemos, ora aprofundamos, ora superficializamos, ora para dentro, ora para fora, ora o ‘não mente’, ora ‘presas da mente’… Nesse trilhar, ora nos perdemos em nossos sonhos e pesadelos, ora seguimos, irresolutamente, o pautar indubitável da Verdade…
Saber viver… Viver é uma arte… Procurar saber viver conscientemente um grande passo… Aceitar os paradoxos… Aceitar o inexplicável… Sorrir equanimamente…
Saber viver… Como posso ver o sangue voltar a jorrar de minhas feridas e saber viver? Como perceber nossos vícios e saber viver? Como nos desenlaçar de nossas próprias armadilhas? Como não fugir e sustentar nossas sensações, no caminho do meio entre a auto-agressão e o amor próprio? O que fazer com a mistura de ódio e amor?
Como integrar tudo o que percebo, sinto e penso, de uma forma construtiva, sem fugir da minha verdade mais profunda, que é o amor?
Saber viver…
Cláudio Azevedo
– Médico, psicoterapeuta, teósofo, tanatólogo e escritor.
croberto@orion.med.br