O Silêncio do Corneteiro / Antônio Marinho

Estava decidido. Após a última aula daquela sexta-feira, ele iniciaria a peregrinação boêmica-afetiva do final de semana. Todavia, não pôde esquivar-se do repetido convite de uma das suas alunas. E lá se foi com toda a turma visitar a Casa de Passagem – ou unidade de abrigo de idosos – por ela dirigida.

Abrigo público, que acolhia os indigentes, os abandonados das famílias e os deserdados da sorte. Como professor de Gerontologia Social na pós-graduação, ele lucraria com a visita. As suas horas de lazer a menos seriam, portanto, recompensadas pelas reflexões colhidas in loco.

Durante a visita um dos internos se sobressai aos demais. Da sua cadeira de rodas, uma das pernas amputada e a outra com os dias contados, o velho parece ter o comando do lugar. Controla o horário das refeições, as filas do banho, a programação da televisão, o volume do rádio. E até as enfermeiras.

Aquele rosto não lhe era de todo estranho. Curioso, o professor pergunta-lhe o nome. O velho interno dispara à queima roupa: Antônio Brioso de Mesquita. Então era isso. Brioso. A cor daquele nome perturba-lhe os olhos. O som daquele nome rompe as travas do seu doloroso compartimento de memórias.

Num instante, um filme projeta-se na tela da sua mente. Em segundos o professor revisita os momentos mais cruéis da sua vida. Recorda-se em 1964, ainda adolescente em Fortaleza, líder estudantil no que hoje é o Centro Federal de Educação Tecnológica – CEFET. A sala de aula. A aula de física. O oficial do Exército que chega para prendê-lo. A exigência da renúncia. A recusa da exigência. O interrogatório na 10a. Região Militar. A intervenção na entidade. A soltura.

O filme avança. Os dias passam. Vê-se pronto para a visita dominical à namorada Sueli. O jipe militar que chega. Os dois homens que dele saem. De novo, a detenção. O tour de tarde inteira por todas as delegacias e puteiros da cidade. A exibição dele às putas como o troféu dos dois homens. As humilhações. A longa genuflexão forçada em cada puteiro. O revólver apontado para a sua cabeça. Os nomes dos comunistas exigidos. Os nomes dos comunistas negados.

Ao fim do périplo, o novo interrogatório. A prisão no 23 BC. O mergulho na cela como rito de passagem à maturidade precoce. Os anos de clandestinidade, a resistência na guerrilha do Araguaia, as torturas ferozes nas mãos da repressão.

O nascimento da filha na clandestinidade, a quem só conheceu aos nove meses. A reunião com ela, pelas mãos da Cruz Vermelha Internacional, já no exílio no Chile. A ida, pós-queda de Allende, para o exílio no Canadá. Os anos de aculturação, ao gelo do clima e dos afetos, no novo país. O retorno ao Brasil com a Anistia. As seqüelas irreversíveis. As crises depressivas. Os remédios tomados.

Como quem ouve o estalar da fita que se finda, o professor recupera o senso de presença. Sua a cântaros. Uma vez a tortura, torturado para sempre. Aquela voz ainda reverbera ameaças aos seus ouvidos. Mas, e se fosse apenas um mero engano. De voz, de figura, de nome e de tudo? O professor, enfim, reage. Quis saber o que Brioso fizera no passado. Fora corneteiro do Exército por 12 anos. “E prendi muitos comunistas”, completa orgulhoso.

Então era ele mesmo, não havia dúvida. De língua solta, o velho desfila o nome de todas as suas vítimas. Todas conhecidas do professor. Muitas delas seus amigos.
– O senhor conheceu alguém de nome Pedro Albuquerque?, indaga o professor.
– Pedro de Albuquerque Neto, corrige o velho. “Prendi-o duas vezes. Ainda nem era homem feito”, arremata. Os alunos se entreolham boquiabertos.

A memória de Brioso navega veloz nas águas do seu passado “glorioso” e ele relata ao professor do presente todas as ameaças e constrangimentos impostos ao seu prisioneiro do passado. Agora certo do que vira e ouvira, mas ainda cauteloso, Pedro toma coragem e atira.

– O senhor não está me reconhecendo? Sou eu, Pedro, diz o professor. O velho pára, o olhar se embaça, e agora cada palavra na sua boca trêmula pesa uma tonelada. O silêncio desaba sobre alunos e internos, sobre o professor e o velho. Sim, ali estava um homem velho, digno de piedade e compaixão. Sob o impacto do momento ninguém consegue antecipar o próximo lance.

– Posso dar-lhe um abraço?, quis saber Pedro.
– Sim, mas somente se você não tiver ódio de mim, faz saber o velho.
Abraço longamente dado. Perdão sinceramente concedido. Brioso faz-se lágrimas e agradecimentos. “Foi Deus quem enviou você aqui”, concede. De sua parte Pedro, o professor, também sabe que aprendeu algo naquele momento. Sabe mais, que alguma coisa se curara dentro dele naquele abraço.

A aluna-diretora informa que quando assumiu a direção do abrigo, Brioso lá já se encontrava. Mas recorda-se dele de anos atrás, sempre bem vestido em roupas de ginástica da marca Adidas, nas vezes em que ia com o marido manhãzinha comprar frutas no Mercado São Sebastião de Fortaleza. Ela conta que ele fora recolhido como indigente, alguns anos depois, ao dormir sob as marquises do velho mercado, onde comia de favores e de sobras.

Revela ainda que o serviço social do abrigo procurara o Exército para recuperar o histórico do velho Brioso, agora nos seus presumidos 76 anos, já que ele não tem certidão de nascimento, e dar entrada num pedido de pensão para ele. O Exército informara desconhecer tal pessoa. E mesmo confrontado com testemunhos de cidadãos que viram Brioso acompanhado de vários oficiais, em ocasiões diversas, mantivera a negativa.

Agora, ante a curiosidade de Pedro, algum muro se erguera no superego de Brioso. A qualquer tentativa de trazer o seu passado à luz da razão e ao escrutínio do tempo, o velho contesta com frases desconexas.
– O EMFA – Estado-Maior das Forças Armadas – está vindo me tirar daqui, diz ele.
– E para onde vai levá-lo?, demanda o professor.
– Para o quartel-general do contingente da Europa; não vou ficar no Brasil, responde o interno.

Algum vento misterioso varreu para sempre todo e qualquer traço escrito da história de Brioso. Todas as buscas feitas pelo pessoal do abrigo a parentes e aos registros nos cartórios na cidade de Itapajé, onde ele alega haver nascido, tem resultado em nada.

Durante o período natalino, numa segunda visita, Pedro e Brioso, apaziguados com os seus fantasmas do passado, novamente se abraçam. O professor vem trazer a caixa de biscoitos Pilar que o velho interno havia pedido.

Pedro, então, quer saber se Brioso arrepende-se de alguma coisa do seu passado de agente da ditadura. Brioso responde que arrepende-se unicamente de nunca haver feito sexo na vida.
– Nunca tive desejos de manter relações sexuais, confessa.

A conversa segue pelos caminhos da lógica. Mas quando o professor se oferece como advogado para abrir um processo contra o Exército e pleitear o reconhecimento do seu trabalho e uma pensão para a sua velhice, Brioso responde cerrando os olhos e fingindo adormecer:
– Papai não me deixa fazer isso. Só posso falar com você quando sair desta prisão.
 
Brioso continua no abrigo. Esquecido de todos. Pedro recuperou parte da sua vida profissional no Brasil depois de voltar do Canadá, com a então esposa, Tereza, e os filhos Izabela, Joana e Bergson. Atualmente, depois de ter vivido um exílio voluntário em Ottawa, capital do Canada, onde fez PhD em Criminologia, Pedro voltou a morar em Fortaleza depois de haver encontado a amada dos seus sonhos e ter se casado novamente aos 63 anos. Ele é a única visita que Brioso tem recebido durante um longo tempo.

Antonio Marinho
– Jornalista
antoniomarinho@hotmail.com

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